domingo, 8 de novembro de 2015

As Esperas de Touros na Calçada de Carriche


Nos finais do séc. XIX ainda havia esperas de touros na Calçada de Carriche. Sobre este tema divulgamos um texto de Vicente Vilar, publicado na Revista Panorama, em 1945.

«Os touros vinham por "seu pé" das lezírias, entre cabrestos e campinos. Chegavam na manhã de sábado ou de véspera de tourada real aos pastos das Marnotas.

Pingado o meio-dia na torre de Frielas, surgiam as primeiras tipóias com os primeiros aficionados - que eram sempre os mesmos.

Ao largo, o “Caraça”, boi de cavalo - quarenta arrobas de peso e quase quarenta corridas no pelo - suspendia a passada plácida e levantava a focinheira malhada, bebendo ares, muito sabido. Posto o que, dava uma “toutiçada” na “choca”, mais próxima, produzindo em toda a manada alarme e grande restolho de chocalhos.

Já tinham vindo mais tipóias. E mais gente - ginetes fidalgos, e picadores, e amadores montando pilecas de aluguer. E todos consideravam, mais ou menos entendidos, a estampa dos “bichos”, que prometiam façanhas para o dia seguinte.

Ao cabo da tarde, o Ezequiel de Carvalho, escarranchado na sua famosa “Andorinha”, sentenciando num conciliábulo de campinos, decretava a abalada. Encabrestavam-se os touros, entre correrias e gritarias. E primeiro a passo, depois a chouto, e depois a trote, ganhava-se o caminho - onde, à cabeça, entrava a cavalgada flamante e no coice, desconjuntando-se e levantando-se, nuvens de poeira, de pragas, de chicotadas e de clamores, o tropel dos trinta, quarenta ou mais carros de praça, que às proximidades tinham acorrido.

A Calçada de Carriche galgava-se a galope desenfreado, no imenso tumultuar daquela caravana, que parecia vir do inferno, endoidecida. Endoidecidos também pareciam os gaiatos, os saloios e saloias, os estúrdias e as loureiras, que se apinhavam nos muros e nas árvores -berrando com os bofes, batendo latas, botando ao passo dos touros, bombas de “lepes” e de vintém.

Que o espectáculo não tinha só esse primeiro acto - das Marnotas e da Calçada de Carriche. Pois, ao longo de resto da tarde e princípios da noite, prosseguia. A manada, em segundo repouso, nos baldios, onde se levantou, ao depois, a Praça do Campo Pequeno; as “hortas” do Campo Grande, atestadas de aficionados, em comezainas e descantes; e o fim - cada vez mais cavaleiros, e mais tipoias, e muito mais povo endiabrado. A largada final, delirante, na “ponta da unha”, para a Praça do Campo de Santana, ao começo da madrugada. Nem um tremor de terra, sacudindo as casas, nas outras noites calmas - que lindavam a velha Estrada do Rego, ou aquelas que, passadas as portas de Arroios, se erguiam nos quarteirões, de ali aos Paços da Rainha! Nem o Fim do Mundo - que lembrava, no seu trovejar de furacão, deixando, por detrás das vidraças, estarrecida e a persignar-se, a acordada gente boa e beata desses bairros de Lisboa!

Mas o "Arreda" ou o 'Paço de Arcos', batedores de monta, haviam sido os primeiros a chegar à praça, ganhando a bandeira. Haviam-se tresmalhado touros, que surgiram, de repente, no Rossio ou Perto do passeio Publico, pregando sustos - e, às vezes, marradas funestas - aos alfacinhas tresnoitados. No José do Borralho ou no José do Altinho, entre pratos de meia desfeita e canjirões de torrejano, a fina flor da Lisboa de fins de Oitocentos, passava a noite, divertidíssima e enternecidíssima, a comer, a beber, e a ouvir castiços fadunchos, cantados pela Chica dos Camarões e pelo Augusto Diguidão. E Tomás de Melo escrevia, com muita razão e verdade: "- Uma espera de touros é o melhor de todos os divertimentos, para o bom e pacífico povo de Lisboa".»


Quando o cortejo comandado pelo General Queirós e com Ezequiel Carvalho ou Ezequiel da Póvoa à cabeça, chegava ao Largo de Santa Bárbara, a Guarda Municipal a cavalo mandava parar e a multidão obedecia com muito esforço devido ao entusiasmo frenético que se apoderava dos aficionados”. 

António Manuel Moraes em Fado Marialva, 2007 

Imagens: Revista Serões, n.º 37,1908

1 comentário:

  1. E... a propósito, os fados desde logo o "da calçada de Carriche e...jà agora lá baixo tinha o Tony de Matos uma casa onde se cantava o fado e por vezes se dançava. Embora o "fado das Caldas tenha algo parecido com a calçada, pois pela pela "ponte da Tornada, por lá é que era o caminho"

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