domingo, 15 de novembro de 2015

Retiro da Ti Jaquina

O Retiro da Ti Jaquina faz parte da memória das casas de pasto dos arredores saloios, onde se cantava o fado. A sua história está ligada à história da terra e dos seus habitantes. 
Era uma das casas de pasto mais antigas da Calçada de Carriche, situada à entrada de Olival Basto. Abriu portas no início do século XX e encerrou no final dos anos quarenta.

Como se pode ler no Boletim Olisipo dos “Amigos de Lisboa” (1942) «as casas do Campo Grande e da Calçada de Carriche, … que se prolongavam com as do Senhor Roubado e de Odivelas, terra dos esquecidos e da marmelada, hoje representados pela Tia Joaquina, locanda que se abre à direita do caminho de Loures, numa casa saloia…».

Eugénio do Espírito Santo, na sua obra “Ameixoeira um Núcleo Histórico” (1997), faz uma descrição das portas de Carriche e da entrada na cidade de Lisboa, com uma referência à Estalagem da Tia Joaquina: «As carroças e outros transportes que entravam pelas portas de Carriche a caminho da cidade, estacionavam ali perto, quando chegavam de madrugada, na “Ti Joaquina” e no “Café dos Bodes” e aguardavam pela abertura do portão para a ação fiscalizadora da mercadoria, que era feita pelos chamados Pica Chouriços, como os alcunhou o povo.

Vinham dos campos dos lados de Loures, Bucelas, Odivelas, Caneças e Montemor, com as suas carroças carregadas de produtos hortícolas em especial e tinham obrigatoriamente que parar pela “barreira” fiscalizadora e pagar o chamado imposto de consumo.»
 
Entre as muitas histórias que se contam sobre o Retiro da Tia Joaquina, há uma fantástica, que está associada aos primórdios da atividade da empresa de transportes Barraqueiro, (fundada em 1914) e que é relatada numa homenagem a Miguel Jerónimo: “O BARRAQUEIRO” (1892 1982), em http://www.mafraregional.pt





«A concorrência era grande e as coisas iam de mal a pior. Quando Miguel toma conta da empresa depara com os passageiros habituais a mudar para os colegas de Torres Vedras sem ele saber porquê, mas não tardou que descobrisse.

Os torreenses ofereciam uma cigarrilha a todos os passageiros logo que entravam nas camionetas. Mal punham o pé lá dentro, cigarrilha na mão. Naquele tempo as mulheres não fumavam, se não a coisa era diferente!... Assim, o chamariz era só para os homens que se consolavam a fumar e as passageiras viajavam desconsoladas.

O Miguel Barraqueiro via as camionetas de Torres passar para Lisboa apinhadas e as suas vazias, e já dizia mal à sua vida, quando lhe ocorre uma genial ideia para responder à concorrência satisfazendo os passageiros e ao mesmo tempo consolar as mulheres.

Se a concorrência oferecia cigarrilhas, ele respondeu com charutos (…) A tática do charuto resultou em cheio, com as camionetas do Barraqueiro abarrotadas de passageiros a fumar charuto, ficando as outras empresas a chuchar no dedo. E para consolar as passageiras que agora se viam mais discriminadas, o patrão Miguel ordena aos seus motoristas que parassem à entrada do Olival Basto, junto à estalagem da Ti Jaquina, ou um pouco mais adiante na tasca do Jorge, para ali oferecer às mulheres um cafezinho quente.»

Os habitantes mais velhos do Olival Basto ainda se lembram do Retiro da Tia Joaquina e dos seus proprietários, que eram a Tia Joaquina e o Ti Xico. Nesta casa de pasto, onde se cruzavam os saloios a caminho da cidade e os alfacinhas que procuravam fora de portas, os prazeres do campo, havia bons petiscos e fados e guitarradas até de madrugada.

Esta era a imagem do edifício, já bastante degradado, nos finais dos anos sessenta do século XX.

Para manter a tradição, em 1949, o “Retiro da Tia Joaquina” foi completamente remodelado e deu lugar a uma outra casa de fados, o “Restaurante Regional Patrício”. 

Um anúncio, publicado no jornal Diário de Lisboa de 31/12/1949, confirma a mudança.




Filomena Viegas




domingo, 8 de novembro de 2015

As Esperas de Touros na Calçada de Carriche


Nos finais do séc. XIX ainda havia esperas de touros na Calçada de Carriche. Sobre este tema divulgamos um texto de Vicente Vilar, publicado na Revista Panorama, em 1945.

«Os touros vinham por "seu pé" das lezírias, entre cabrestos e campinos. Chegavam na manhã de sábado ou de véspera de tourada real aos pastos das Marnotas.

Pingado o meio-dia na torre de Frielas, surgiam as primeiras tipóias com os primeiros aficionados - que eram sempre os mesmos.

Ao largo, o “Caraça”, boi de cavalo - quarenta arrobas de peso e quase quarenta corridas no pelo - suspendia a passada plácida e levantava a focinheira malhada, bebendo ares, muito sabido. Posto o que, dava uma “toutiçada” na “choca”, mais próxima, produzindo em toda a manada alarme e grande restolho de chocalhos.

Já tinham vindo mais tipóias. E mais gente - ginetes fidalgos, e picadores, e amadores montando pilecas de aluguer. E todos consideravam, mais ou menos entendidos, a estampa dos “bichos”, que prometiam façanhas para o dia seguinte.

Ao cabo da tarde, o Ezequiel de Carvalho, escarranchado na sua famosa “Andorinha”, sentenciando num conciliábulo de campinos, decretava a abalada. Encabrestavam-se os touros, entre correrias e gritarias. E primeiro a passo, depois a chouto, e depois a trote, ganhava-se o caminho - onde, à cabeça, entrava a cavalgada flamante e no coice, desconjuntando-se e levantando-se, nuvens de poeira, de pragas, de chicotadas e de clamores, o tropel dos trinta, quarenta ou mais carros de praça, que às proximidades tinham acorrido.

A Calçada de Carriche galgava-se a galope desenfreado, no imenso tumultuar daquela caravana, que parecia vir do inferno, endoidecida. Endoidecidos também pareciam os gaiatos, os saloios e saloias, os estúrdias e as loureiras, que se apinhavam nos muros e nas árvores -berrando com os bofes, batendo latas, botando ao passo dos touros, bombas de “lepes” e de vintém.

Que o espectáculo não tinha só esse primeiro acto - das Marnotas e da Calçada de Carriche. Pois, ao longo de resto da tarde e princípios da noite, prosseguia. A manada, em segundo repouso, nos baldios, onde se levantou, ao depois, a Praça do Campo Pequeno; as “hortas” do Campo Grande, atestadas de aficionados, em comezainas e descantes; e o fim - cada vez mais cavaleiros, e mais tipoias, e muito mais povo endiabrado. A largada final, delirante, na “ponta da unha”, para a Praça do Campo de Santana, ao começo da madrugada. Nem um tremor de terra, sacudindo as casas, nas outras noites calmas - que lindavam a velha Estrada do Rego, ou aquelas que, passadas as portas de Arroios, se erguiam nos quarteirões, de ali aos Paços da Rainha! Nem o Fim do Mundo - que lembrava, no seu trovejar de furacão, deixando, por detrás das vidraças, estarrecida e a persignar-se, a acordada gente boa e beata desses bairros de Lisboa!

Mas o "Arreda" ou o 'Paço de Arcos', batedores de monta, haviam sido os primeiros a chegar à praça, ganhando a bandeira. Haviam-se tresmalhado touros, que surgiram, de repente, no Rossio ou Perto do passeio Publico, pregando sustos - e, às vezes, marradas funestas - aos alfacinhas tresnoitados. No José do Borralho ou no José do Altinho, entre pratos de meia desfeita e canjirões de torrejano, a fina flor da Lisboa de fins de Oitocentos, passava a noite, divertidíssima e enternecidíssima, a comer, a beber, e a ouvir castiços fadunchos, cantados pela Chica dos Camarões e pelo Augusto Diguidão. E Tomás de Melo escrevia, com muita razão e verdade: "- Uma espera de touros é o melhor de todos os divertimentos, para o bom e pacífico povo de Lisboa".»


Quando o cortejo comandado pelo General Queirós e com Ezequiel Carvalho ou Ezequiel da Póvoa à cabeça, chegava ao Largo de Santa Bárbara, a Guarda Municipal a cavalo mandava parar e a multidão obedecia com muito esforço devido ao entusiasmo frenético que se apoderava dos aficionados”. 

António Manuel Moraes em Fado Marialva, 2007 

Imagens: Revista Serões, n.º 37,1908