sexta-feira, 4 de dezembro de 2015

Vamos para Carriche, a Nova Cintra!

No séc. XIX havia ao fundo da calçada de Carriche a Quinta Nova Cintra, com um “retiro das hortas”, que aí se instalou por volta de 1856. Ali paravam os transportes que circulavam de Lisboa para norte, a caminho de Loures e Torres Vedras. 

A reconstituição da história e das memórias deste sítio, só é possível através da análise de pequenos trechos dispersos na literatura do séc. XIX e do início do séc. XX.

Pertenceu esta quinta a José Joaquim Leite Guimarães (1808-1870) natural da freguesia de São João Baptista de Pencêlo, Guimarães, que emigrou para o Brasil e por lá fez uma avultada fortuna. Quando regressou a Lisboa, em 1852, comprou esta quinta situada na Freguesia de S. João Baptista do Lumiar, nos arredores da cidade (extramuros). O nome desta quinta está na génese do título de Barão de Nova Cintra, com o qual o distinguiu o Rei D. Luís I, por Decreto de 8 de Abril de 1862, por importantes serviços prestados ao pais.

Todos os roteiros de viagem do séc. XIX recomendam a passagem pela Quinta de Nova Cintra, como um ponto importante para ser visitado pelos viajantes, que vêm a Lisboa.

O Guia Luso-Brasileiro do Viajante na Europa refere o seguinte: «Calçada de Carriche, eis aqui onde se vê a formosa Quinta, baptizada com o nome mimoso de Nova Cintra é uma casa de pasto, que passa por ser a melhor extramuros de Lisboa. É preciso examinar esta bela quinta para encarecer o seu justo apelido. Continuando o passeio passa-se por um tosco monumento que comemora o desacato de Odivelas, e o suplício atroz de um delinquente. Odivelas, lugar notável somente pelo convento de freiras e sua ótima marmelada.»

Em 1862, Vilhena Barbosa na sua obra Fragmentos de um Roteiro de Lisboa e Arrabaldes de Lisboa apresenta uma descrição do sítio «Regressando do Paço do Lumiar à Estrada Real, e prosseguindo nela, desce-se a Calçada de Carriches, que é um lugar de 24 fogos, e pouco mais de 90 moradores, compreendidos na Freguesia de S. João Baptista do Lumiar. No fundo da Calçada está uma hospedaria, que se ataviou com o pomposo título de Nova Cintra. Não quadra muito bem o título, quer ao sítio, quer ao estabelecimento, pois que o primeiro carece de beleza e de arte, e o segundo de mais atrativos e comodidades. Todavia, ambos têm tido alguns melhoramentos, e podem ter muitos outros, que virão com o tempo, visto que lhes não falta a concorrência de público. Pouco adiante da Nova Cintra, em sítio plano, há um largo onde a estrada se divide em dois ramais. O que segue direito conduz à Póvoa de Santo Adrião, Mealhada, Loures, e outras terras dos arrabaldes de Lisboa, e depois a Torres Vedras. O da esquerda leva o viajante ao lugar de Odivelas, e a várias outras aldeias.»

No Novo Guia do Viajante em Lisboa e seus Arredores, encontra-se esta referência: «Calçada de Carriche, encontra-se uma formosa quinta, batizada com o nome de Nova Cintra, e a melhor casa de pasto extramuros de Lisboa, ruas de bem copado arvoredo, solitários caramancheis, uma serra com um belo caminho, praticamente por entre canaviais, no alto dela um mirante para descansar daquela ascensão, água puríssima e sempre fresca rebentando em abundância, ao lado de óptimos frutos e flores variegadas – eis aí a Nova Cintra, que bem merece o seu atrevido nome. A mesa é bem servida em pequenas salas de uma habitação unida à quinta, ou em algum dos Kioskos, ou mesmo nas ruas de arvoredo se assim o quereis. Dirigindo-se deste lugar para Odivelas, encontra-se no caminho um tosco monumento e a sua história escrita e figurada em azulejo; é a memória de um desacato e roubo perpetrado no convento de Odivelas, e do suplício atroz do delinquente.»

No Roteiro do Viajante no Continente e nos Caminhos de Ferro de Portugal encontra‑se outra referência a esta quinta: «Terminamos com Nova Cintra, ponto obrigado para ser visitado por todos os viajantes, que vêm a Lisboa e que dificultosamente deixam de ir a Nova Cintra. Nada pode justificar este título; mas a moda concedeu-lho, e por isso não há remédio senão sujeitar-se a gente aos seus caprichos. A Nova Cintra é uma pequena quinta com agradáveis passeios e uma boa casa de pasto. Para nós só tem um merecimento, e é poder servir de exemplo, na escola da vida para provar o que é a constância no trabalho e na indústria, porque de um ordinário e pouco rendoso casal, conseguiu o actual proprietário fazer uma boa e valiosa propriedade e recebeu em recompensa das suas fadigas e lavores, deixar a adversidade de o perseguir, e ser hoje naquela localidade querido e festejado por uns, adulado e invejado por outros.»

Pinho Leal no livro Portugal Antigo e Moderno refere o seguinte: «Carriche ou Calçada de Carriche - aldeia da Estremadura, freguesia de São João Baptista do Lumiar, termo, distrito, comarca e 8 km ao NO de Lisboa, 24 fogos, 90 almas. Situada sobre a estrada real, que de Lisboa conduz a Loures, e próximo do Lumiar e também na estrada para Odivelas (que é a mesma do Lumiar). No fundo da Calçada de Carriche está uma hospedaria que pomposamente se intitulou de “Hotel Nova Cintra”. É por isso que muita gente vai chamando a este sítio Nova Cintra. Em Nova Cintra é a quarta estação do caminho de Ferro Larmanjat de Lisboa a Torres Vedras. Tem esta povoação tido bastantes melhoramentos, e, como é muito concorrida das famílias de Lisboa (principalmente no verão), é bastante provável que ainda venha a merecer o nome de Nova Cintra.»

João Maria Baptista, na sua obra Choreographia moderna do reino de Portugal, afirma o seguinte: «Não devemos deixar em esquecimento nesta F. do Lumiar o belo sítio da calçada de Carriche, muito concorrido no verão, onde há o novo hotel da Esperança, e mais abaixo o da Nova Cintra pertencente ao Sr. Theotonio, que há poucos anos era muito concorrido, e que hoje é vivenda agradável e de frescas sombras em uma tarde de estio, por ficar na estreita garganta entre as duas pequenas serras d’Ameixoeira e Alcoutins.»

Esta estalagem e casa de pasto também está associada à história do fado e às esperas de touros, sendo referida por diversos autores que abordam estas temáticas. Sousa Bastos afirma que: «Durante muito tempo, aos sábados à tarde e à noite, foi uma grande diversão a espera dos touros. Era um pretexto (...). A melhor roda ficava no Campo Grande, no Cá e Lá, taberna afamada, ou na Calçada de Carriche, no popular Teotónio.» 8

As esperas de toiros e as touradas faziam parte dos costumes dos habitantes da cidade de Lisboa, praticamente desde o século XIV, e persistiram até aos finais do séc. XIX. Na literatura olisiponense encontramos relatos da agitação provocada pela passagem das manadas de touros a caminho das praças do Salitre e do Campo de Sant’Ana, e mais tarde do Campo Pequeno. Os touros provenientes das lezírias eram conduzidos por batedores e campinos desde Frielas, subindo a Calçada de Carriche e atravessando o Campo Grande, ou através da estrada de Sacavém. A condução do gado bravo para o Campo de Santana tinha o seu início à terça-feira, quando os toiros levantavam das lezírias com destino a Frielas, onde descansavam até sexta-feira, à noite. No sábado pelas cinco horas da tarde, iniciava-se o percurso até ao Campo Pequeno, onde permaneciam, junto ao Palácio Galveias até à uma hora da madrugada. Ao longo deste percurso, desde Carriche até ao Arco do Cego, instalavam-se os retiros e as casas de pasto, locais de convívio e de patuscadas, nos quais se juntavam os aficionados, os boémios e os fadistas na noite anterior à chegada dos touros, sendo as mais preferidas a Nova Cintra, Patusca, José dos Santos, Quebra Bilhas, Colete Encarnado, António da Joana. 9

Tomaz de Mello num pequeno livro sobre As Esperas de Touros em Carriche faz uma descrição impressionante do ambiente que se vivia nesta quinta, nessa época: «Desde o meio-dia que principiavam a afluir os trens e os cavaleiros para Nova Cintra. Era um espectáculo atraente. Sob os caramanchões, tapados de hera e boungainville, mesas cobertas por alvíssimas toalhas, esperavam os convivas. Trajes policromos, destacando-se por entre a verdura, davam nota colorida ao recinto de Nova Cintra e, entre a alegria rumorosa da conversação e o tilintar dos vidros, vinham, como sons de harpa eólica trazidos pela vibração, as notas plangentes e cismadoras das banzas, gemendo fados para os lados da mina, vibrados à sombra dos valados que se vestiam de madressilva e rosas silvestres. (...) Pelas quatro da tarde corria tudo para o muro da propriedade! Era a hora em que se largava o gado das pastagens das Marnotas. Carros com seus fregueses preparavam-se para buscar o curro, outros seguiam até ao Senhor Roubado, fazendo horas para a passagem, indo depois no couce.» 10

Era assim que o universo da tauromaquia se associava ao ambiente cultural do fado, em locais de convívio onde se misturavam fidalgos, cavaleiros, camponeses, operários, prostitutas e fadistas. 

Segundo Pinto Bastos «Nas sucedâneas de 1846, já se guitarreava o fado, como sucedia na Horta das Tripas (…). E esta tradição do fado manteve‑se nas hortas das épocas posteriores: João da Bateira, António das Noras, em Arroios, Quintalinho da travessa do Pintor, Theotónio da Calçada de Carriche ou Nova Cintra (onde se ia em burricadas) a Joana do Colete Encanado, no lado oriental do Campo Grande (que passou depois para a azinhaga da Torre, no Lumiar).» 11


O proprietário do Hotel Nova Cintra foi também um benemérito, já que o seu nome aparece associado a uma obra de beneficência, o Asilo da Infância Desvalida e dos Pobres do Lumiar, criado no reinado de D. Pedro V, seu patrono. «Teve início numa comissão de beneficência fundada pelo antigo proprietário do Hotel Nova Cintra, na calçada de Carriche, Theotónio Victorino D´Assumpção. À custa do produto de bazares de caridade e de donativos diversos, começou desde 1857 a sustentar, vestir e educar 4 crianças do sexo feminino e a dar anualmente um bodo a 80 raparigas do Lumiar.» 12 

Ficamos a saber que Theotónio Victorino D'Assumpção, mais tarde, deixou o Hotel Nova Cintra e foi estabelecer-se no Campo Grande, através da literatura sobre a história do fado e das esperas de touros. Alberto Pimentel, na sua obra A triste canção do sul, fala-nos do fado de Carriche, descrevendo o sítio como «Pequena povoação da freguesia do Lumiar, arrabalde de Lisboa, Carriche é um sítio muito frequentado por ocasião das esperas de touros, posto já o fosse mais, quando ali havia, ao fundo da calçada, o Hotel de Nova Cintra, com uma bela horta para comezainas ao ar livre (…) Hoje o dono do Hotel veio estabelecer-se no Campo Grande. No sítio, apenas restam algumas tascas, que ainda assim fazem bom negócio em noitadas de touros, e que são habitualmente visitadas pelos saloios que ali passam.» 13 

Por volta de 1948, foi retomada a tradição das casas de pasto e das noites de fados e guitarradas na Calçada de Carriche e nesta quinta instalou-se o restaurante Nova Sintra. 

Alguns anos mais tarde, o mesmo edifício foi ocupado pelo restaurante O Pampilho, bastante conhecido no ambiente fadista. 


Montagem a partir de Fotografias de Artur Goulart, 1965, Arquivo Municipal de Lisboa


O edifício foi demolido em 1970, para alargamento da Calçada de Carriche.

Hoje, a vegetação cobre toda a encosta, e o tempo apagou os vestígios desta quinta. 

Só um olhar mais atento descobre uma passagem ...



Fotografia de Miguel Henriques, 2015




1 SAMAGAIO, Estevão (S.D.) José Joaquim Leite Guimarães Barão de Nova Sintra, Santa Casa da Misericórdia do Porto.
2 LEMOS, Ignácio Manuel, (1859) Guia Luso-Brasileiro do Viajante na Europa, Tipografia de António José Silva Teixeira, Porto, pág. 23.
3 BARBOSA, Vilhena (1862), Fragmentos de um Roteiro de Lisboa (Inédito) Arrabaldes de Lisboa, in Archivo Pittoresco, Semanário Illustrado, Editores e Proprietários Castro Irmão & C.ª, Lisboa, Vol. VI, p. 326-328; 332-333.
4 BORDALO, Francisco Maria (1863) Novo Guia do Viajante em Lisboa e seus Arredores: Cintra, Colares, Mafra, Batalha, Setúbal, Santarém, etc. (segunda edição aumentada), Editor J. J. Bordalo, Lisboa, pág. 163-164.
5 ABREU, João António Peres, (1865) Roteiro do Viajante no Continente e nos Caminhos de Ferro de Portugal, Imprensa da Universidade, Coimbra, pág. 132.
6 PINHO LEAL, Augusto Soares de Azevedo Barbosa, (1874) Portugal Antigo e Moderno, Vol. II, ed. Livraria Editora de Mattos Moreira & Companhia, Lisboa, pág. 127-128.
7 BAPTISTA, João Maria (1876) Chorographia moderna do reino de Portugal, Volume 4, Typographia da Academia Real das Sciencias, Lisboa, pág. 740.
8 SOUSA BASTOS, António (1947) Lisboa Velha: sessenta anos de recordações 1850 – 1910, pág. 106. 
9 CARMO, José Pedro, (1926) Touros: Arte Portuguesa, Livraria Popular de Francisco Franco; ABREU, Carlos, (1908) Esperas de Touros, Revista Serões n.º 37, Julho, pág. 3-18.
10 MELLO, Tomáz, (1874) A Espera de Touros em Carriche, Scenas Lisboa.
11 PINTO DE CARVALHO (Tinop) (1908) História do Fado, Empreza da História de Portugal, pág 28.
12 RIBEIRO, Victor (1904) A História da Beneficência Publica em Portugal, in O Instituto Revista Cientifica e Literária, Vol. 51, Imprensa da Universidade, Coimbra, pág. 3.
13 PIMENTEL, Alberto (1904) A triste canção do sul (subsídios para a história do fado, Livraria Central Gomes de Carvalho, editor, pág. 246-247.

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